A IDENTIDADE DO FUMADOR DE CACHIMBO Num Ambiente Legal Restritivo

De Henedina Martins Ferreira, artigo elaborado no âmbito do seminário em Gestão de Imagem do Mestrado em Comunicação Estratégica – Agosto de 2010. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa. (texto em Português/Portugal).

RESUMO

A lei de protecção dos cidadãos à exposição involuntária do fumo do tabaco veio alterar hábitos e comportamentos sociais. A comunidade de fumadores de cachimbo constitui um grupo minoritário no universo de fumadores e tem um estilo de vida adequado aos rituais que implicam a utilização do cachimbo. Tradicionalmente, a identidade de um fumador de cachimbo é conotada com um homem introvertido e reflexivo, até com uma certa aura de mistério, em que o cachimbo é também um elemento distintivo. Tendo como referência a identidade percebida do fumador de cachimbo, pretende-se compreender o que mudou depois da lei antitabágica e até que ponto foi abalado o seu edifício de sentido. Com base em entrevistas a um grupo de fumadores, apresentamos os traços que os distinguem, quais as mudanças que se viram obrigados a fazer nos seus hábitos para cumprir a lei, assim como as interferências dessas mudanças no prazer de fumar. Também foi abordada a questão dos clubes de cachimbo, ao terem de enfrentar alguma desestabilização institucional, e de que forma poderão moldar uma estratégia para encontrar oportunidades de se recriarem neste contexto legal adverso.

INTRODUÇÃO

E porquê fumadores de cachimbo?

O meu interesse pelos fumadores de cachimbo, como comunidade global, despertou numa assembleia-geral do organismo internacional que congrega as federações nacionais dos clubes de cachimbo, em que participei, em 2006. Encontrei uma organização institucionalizada, com regulamentos e comportamentos com que todos se identificavam. Um dos problemas discutidos era de ordem prática: como manter o calendário de competições nacionais e internacionais perante a proibição de fumar em hotéis, centros de congressos e outros espaços de reunião. Mas havia outras questões de cariz sociológico e relacional: o fumador de cachimbo estava a ser contaminado pela imagem do fumador compulsivo de cigarros. Essa indiscriminação negativa partia sobretudo dos grupos de pressão antitabágicos: fuma, logo é mau.

Acompanhei o evoluir da situação em conversas com fumadores de cachimbo em diversos países, em artigos de meios especializados e até “espreitei” alguns dos inúmeros fóruns que circulam na internet. Percebi alguns sinais de desinstitucionalização dos fumadores de cachimbo e dos seus clubes, visível numa certa erosão resultante da pressão exercida pelas novas leis, um abalo num estatuto “taken-for-granted”. Mas também reconheci um movimento de afirmação de um estilo de vida de que não se quer abdicar. Se de um lado se notam desistentes, de outro há resistentes.

Objectivo

A identidade dos fumadores de cachimbo está assente na afirmação individual que se expressa através da preparação de uma determinada mistura de tabacos, da escolha do cachimbo e dos acessórios, dos truques que se exibem para obter uma melhor performance. Com estas especificidades constroem-se narrativas individuais dentro da comunidade de fumadores de cachimbo – algumas até se tornam lendas – contribuindo para a consolidação da cultura de um grupo que se diferencia de outros tipos de fumadores. Os clubes a que pertencem são um espaço, que não tem de ser físico e literal, que lhes permite afirmar essa identidade e que, ao mesmo tempo, legitima e institucionaliza uma forma peculiar de exercer o direito de liberdade de expressão, que é fumar cachimbo.

Este artigo é uma tentativa de conhecer o “lugar” onde os fumadores de cachimbo se colocam, considerando o ambiente legal restritivo em vigor, de que forma os seus rituais foram ou não afectados, qual o impacto no seu estilo de vida e que papel institucional poderá ser assumido pelos clubes de cachimbo.

Metodologia

Foram convidados para uma reunião dez fumadores de cachimbo, sócios do Cachimbo Clube de Portugal, sete homens e três senhoras, com idades compreendidas entre os 45 e os 62 anos, todos fumadores há mais de 25 anos, para se conversar sobre o impacto da restrição legal de fumar na sua identidade individual e colectiva e como se estão a adaptar à mudança. A primeira parte da reunião constou de quatro perguntas abertas e a segunda de uma pergunta fechada com várias escolhas, cujas respostas compiladas serão apresentadas neste artigo.

1 – Pequena história do cachimbo e do fumador de cachimbo

A primeira referência ao acto de fumar é atribuída a Heródoto e aos gregos no século V a.C., embora os arqueólogos tenham encontrado cerâmica, estatuária e hieróglifos que fazem recuar o hábito de fumar a três mil anos antes. Nas ruínas da antiga cultura Maia, na América Central, encontram-se gravações em pedra, com mais de mil anos, que mostram sacerdotes a fumar cachimbos em rituais religiosos. Sendo a planta de tabaco originária dessa região, é provável que se tenha propagado ao México, onde os Aztecas fumavam cachimbos semelhantes. Na América do Norte, os índios usavam-nos em diversas cerimónias. “Passado de mão em mão, como sinal de entendimento […] era uma oferenda aos deuses” e “significava a comunhão entre o homem e o universo”.

O acto de fumar era descrito em três situações diferentes: (1) socialização, (2) relaxamento e (3) contemplação. É fácil imaginar os membros de uma tribo, ou de um grupo, sentados em volta de uma fogueira, a fumar e a conversar sobre os acontecimentos do dia (Crole, 1999, Jeffers, 1998, Newcombe, 2006, apud LoConto, 2010: 10). Da mesma forma, para muitos nativos americanos, fumar cachimbo em grupo era um símbolo de respeito entre os seus membros. Fumar, de uma forma geral, constituía um momento de relaxamento que fazia parte de variados rituais (Newcombe, 2006, apud LoConto, 2010: 10)4.

No entanto, fumar cachimbo nunca dependeu da existência ou não da planta de tabaco, pois antes de a América ter sido descoberta pelos europeus, os pigmeus do Congo, por exemplo, fumavam uma mistura de carvão com folhas, usando uma cana de bambu como cachimbo. Fumar cachimbo, desde a antiguidade até à época actual, foi sempre uma expressão de liberdade no usufruto de um prazer, de um ritual, religioso ou não, um momento de comunhão com os outros, fossem deuses ou homens. Nunca um privilégio de classe, mas tão só uma opção do gosto individual. Os nativos americanos faziam cachimbos de argila, madeira e pedra, consoante as matérias-primas de que dispunham no seu ambiente natural. As suas formas e materiais foram copiados pelos marinheiros portugueses que cruzaram o Atlântico na busca de novos mundos e novos produtos para mercar. Foi assim que o hábito de fumar chegou à Europa no início do século XVI e, logo a seguir, à Ásia, primeiro com o tabaco, levado pelos portugueses, e depois com o cachimbo (o “kiseru”), pelos holandeses.

2 – O que é o cachimbo e o que é fumar cachimbo

O cachimbo é um objecto constituído por um fornilho ou cabeça onde se coloca uma pequena quantidade de tabaco (ou de outras plantas aromáticas) e que “tem uma forma anatómica e deve ser agradável ao contacto com a mão do fumador”; uma canela, “normalmente inseparável da cabeça, une esta à boquilha e tem no interior o canal de fumo…”; e a boquilha que “permite a condução do fumo até à boca e deve encaixar perfeitamente na canela”.

Fumar cachimbo não é algo que se possa fazer “à pressa”, em qualquer lugar ou em qualquer momento. Exige que se tenha um ambiente adequado ao cumprimento do ritual: tirar o tabaco da bolsa onde é guardado, encher o fornilho com uma técnica própria, acender calmamente o tabaco, certificar-se que está em combustão e, finalmente, fumar. Mas o processo não termina aqui, pois tem de se ir retirando a cinza que se acumula no topo do fornilho com o calcador e mexer o tabaco no fornilho com um estilete, para não apagar, num diálogo gestual entre o homem e o seu cachimbo, que traduz as emoções e o estilo de cada fumador. Quando acaba, tem ainda de retirar os restos do tabaco que ficou no fornilho, mantendo-o em condições de reutilização e, finalmente, arrumar os acessórios. É todo este processo, que constitui o ritual do fumador de cachimbo, que convida à sociabilização, se estiver com outras pessoas, ou à reflexão e contemplação, se estiver consigo próprio.

A literatura, a pintura, a gravura e mais tarde a fotografia e o cinema deixaram-nos testemunhos de muitas personagens humildes a fumar cachimbo: na taberna, na pesca, numa pausa no campo, na sua oficina de artesão. Mas também de escritores, pintores, cientistas, filósofos, músicos e de personagens de ficção como o célebre Sherlock Holmes. Havia um denominador comum a todos eles, tal como na antiguidade ou na era pré-colombiana na América: relaxar, socializar, reflectir.

3 – A institucionalização do fumador de cachimbo

É facto assente que foi Sir Walter Raleigh quem introduziu o cachimbo na corte inglesa e o tornou uma moda. A esse propósito conta-se uma estória deliciosa. Apesar de, no final do século XVI, já haver muitos fumadores em Inglaterra, nomeadamente na corte, nenhum deles tinha a ousadia de acender o cachimbo na presença da rainha Isabel, pois constava que ela não apreciava essa mania. Mas Sir Walter, para não ter de prescindir do seu cachimbo, introduziu o tabaco na corte através de uma artimanha. Um dia, estando a rainha na Câmara Real, Sir Walter decidiu pegar no seu cachimbo e começar a enchê-lo. Antes que a rainha tivesse tempo de reagir, perguntou-lhe se achava que ele podia pesar o fumo que saía do seu cachimbo. A rainha não sabia como isso seria possível, mas Sir Walter prontificou-se a fazê-lo e até convenceu Isabel I a fazer uma aposta de uma mão cheia de moedas de ouro. Sir Walter chamou, então, o Químico da corte e pediu-lhe para trazer a sua balança mais sensível, onde colocou o cachimbo cheio de tabaco, pedindo-lhe que o pesasse e anotasse o resultado. A seguir, Sir Walter sentou-se numa cadeira confortável a fumar, enquanto a rainha e os outros cortesãos observavam. Quando acabou, entregou o cachimbo com as cinzas ao Químico, que o pesou novamente e anotou o seu peso. Então, Sir Walter disse à rainha que, se o peso do cachimbo depois de fumado fosse subtraído ao peso inicial antes de ter começado a fumar, “a diferença tem de ser o peso do que tinha desaparecido, ou seja, Majestade, o peso do fumo”. Isabel I reconheceu o ponto de vista do seu conselheiro e deu-lhe as moedas de ouro da aposta, dizendo: “Conheci muitos alquimistas que desfizeram ouro em fumo, mas só a si, Sir Walter, vi transformar fumo em ouro”. A partir desse momento, não só foi oficialmente introduzido na corte o fumador de cachimbo, como se espalhou a moda em toda a Inglaterra.

– Coloco aqui, uma observação minha: estou com duvidas sobre o nome da Rainha em questão… Apesar de, no trabalho apresentado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, se minha memória não me engana, Sir Walter Raleigh era um dos Capitães Corsários da Corte Inglesa, sob o reinando de Elizabeth I (e não Isabel I que era Rainha de Espanha…)… Acho… –

Sir Walter Raleigh tinha iniciado a institucionalização de um hábito, promovendo a sua aceitação social, o que correspondia às expectativas de outros fumadores de cachimbo, legitimando o acto de fumar, visto que tinha sido sancionado pela autoridade máxima, a Rainha de Inglaterra. Assim, os fumadores puderam começar a usar os seus cachimbos, sem receio de desagradar, e os comportamentos e a etiqueta social foram adaptadas a esta nova moda, criando-se um hábito que se estabilizou no mundo ocidental, construído que foi um sentido com raízes na história e na tradição da recém descoberta América. Numa primeira fase, os artefactos usados para fumar eram idênticos aos que os marinheiros tinham trazido do novo mundo e só os acessórios requintados e de alto preço distinguiam o poder económico do fumador. Com a disseminação do hábito de fumar cachimbo, os artefactos evoluíram, assim como a preparação dos diversos tipos de tabaco, consagrando-se até hoje determinadas misturas de folhas de tabaco que se tornaram emblemáticas e fizeram a fortuna de muitos comerciantes. Recorrendo mais uma vez a Weber (1965), “nos seus primórdios [fumar cachimbo] era reconhecido como uma arte, e nenhum homem era considerado um cavalheiro até que soubesse fumar correctamente”. Havia mesmo professores para ensinar os truques e mistérios dessa arte: “o cavalheiro da moda fumava a qualquer hora e em qualquer lugar, fosse no teatro ou na rua […] trazia no bolso um conjunto de acessórios – caixa de tabaco, calcador para empurrar as folhas para dentro do fornilho – tudo feito com materiais caros”.

Temos, portanto, todos os ingredientes de uma verdadeira instituição à escala global, que perdurou quatro séculos: a história e a tradição, a prática generalizada, o desejo de pertencer ao grupo através da prática dos rituais inerentes, a evolução científica e técnica na preparação do tabaco e na produção dos cachimbos. A partir de meados do século XVIII, com a descoberta de uma urze que cresce espontaneamente nas encostas da bacia mediterrânica, com o nome de Erica arborea, os artesãos passaram a criar verdadeiras obras de arte. Esta nova matéria-prima dá origem a objectos únicos, que resultam da conjugação da Natureza com a habilidade de cada artesão. “Oficialmente, os primeiros cachimbos em Erica arborea foram feitos em 1856” e, desde logo, não só deram um enorme impulso ao movimento coleccionista mundial, como também mudaram a relação do indivíduo com o objecto. O novo fenómeno originou a produção de investigação histórica, sociológica e filosófica. Depois da II Guerra Mundial, com o decréscimo do uso do cachimbo e a ascensão meteórica do cigarro, mais de acordo com a nova sociedade da velocidade, do tempo que não dura, a partir dos finais da década de 1950 deu-se uma “revolução” na manufactura dos cachimbos, com origem na Dinamarca, pela mão do artesão Sixten Ivarsson. “O artesão trabalha sempre de acordo com o grão da madeira (“chameado”), para criar um objecto único e irrepetível, cuja concepção é bem mais demorada do que um cachimbo clássico produzido em série”. A identidade de fumadores famosos deve muito aos cachimbos que usaram ou usam, encontrando-se muitas vezes uma simbiose entre o prestígio do fumador e o do artesão a quem compra os cachimbos, chegando mesmo o artesão a fazer um cachimbo tendo em mente a personalidade de determinado fumador. A esta arte de fazer cachimbos pode aplicar-se a concepção pragmática de arte defendida por John Dewey (1934: p.4) descrita num ensaio intitulado “A Arte como Experiência”.

É perfeitamente possível apreciar flores na sua forma colorida e perfume delicado, sem conhecer absolutamente nada teoricamente acerca de plantas. Mas se nos propusermos compreender o florescimento das plantas, acaba-se por descobrir a interacção do solo, do ar, da água e do sol que condicionam o crescimento das plantas. A manufactura de cachimbos a partir de uma raiz de urze, que pode demorar 100 anos a crescer e mais 20 a ficar pronta a ser esculpida, para no final se produzir uma peça de arte, que pode ser um objecto de desejo que se imagina a acariciar no côncavo da mão, a olhar, a tocar com os lábios, a possuir, é uma expressão artística singular. Não cabendo neste artigo aprofundar esta vertente, referimos outros materiais quase míticos com que se produzem outras obras de arte, como a “morta” ou a “espuma do mar”, porque é imprescindível abordá-la para entender as modificações que trouxe à identidade do fumador de cachimbo, a partir de determinada altura, e ao papel que os artesãos e a sua arte podem representar na visibilidade da reputação do fumador.

4 – Os clubes de cachimbo

O aparecimento de cachimbos como objectos únicos, autênticas pequenas esculturas para uso comum, assim como a grande variedade de misturas (blends) de tabacos que as empresas especializadas apresentavam no mercado incentivou ainda mais a socialização ou convivialidade entre os adeptos do cachimbo. Começaram, então, a surgir nos finais do século XIX, várias associações locais onde os seus membros se reuniam, trocavam informação, conversavam e exibiam os seus objectos de fumar. Nasciam, assim, os primeiros clubes de cachimbo. Com predominância na Europa Central, foram-se espalhando a outros países e organizaram-se em federações nacionais, com o objectivo de conhecer os fumadores numa comunidade mais alargada, levando a cabo competições para avaliar e comparar as suas “habilidades” no uso do cachimbo. Em 1973 foi constituído o Comité International des Pipe Clubs (CIPC) com o objectivo de reunir os clubes nacionais “a fim de estabelecer entre eles laços amigáveis de concertação e cooperação, para ajudar o seu desenvolvimento e organizar os grandes encontros internacionais”. Em Portugal, em Janeiro de 1984, um grupo de amigos formou uma associação de direito privado, ao abrigo da liberdade associativa consagrada na Constituição Portuguesa, que designou Cachimbo Clube de Portugal, com a finalidade de “propagar o gosto e a arte de fumar cachimbo”. Posteriormente tornou-se membro do CIPC. Os clubes de cachimbo são locais de reunião, de partilha de informação, inseridos nas comunidades locais e frequentados pelos associados e seus convidados, assegurando a continuidade dos rituais e dos comportamentos e enriquecendo o património do conhecimento. Podemos considerar estes clubes como instituições que preservam uma herança e que as actividades que desenvolvem têm o objectivo de dar conhecimento dessa herança à comunidade.

5 – O fumador de cachimbo antes da legislação antitabágica

Vimos que a identidade do fumador de cachimbo começou a construir-se na antiguidade, em rituais tribais ou religiosos, usados por guerreiros, feiticeiros, e pessoas comuns, homens e mulheres, e chegou à Europa, e a partir daqui à Ásia, como um objecto de uso quotidiano de onde os seus utilizadores retiravam prazer e companhia nas longas viagens marítimas de travessia dos oceanos ou nos seus momentos de contemplação ou convívio social. Depois de institucionalizado o seu uso, o cachimbo subiu na escala social e chegou à aristocracia, onde se distinguiu pela extravagância e peculiaridade dos acessórios, mais do que pelo cachimbo ou pelo tabaco em si. O estereótipo do fumador de cachimbo no início do século XX era o de um homem cerebral, filosófico, seguro, calmo, confiável, reflectido. Acreditamos que essa imagem pode ter sido influenciada por frases atribuídas a pessoas célebres ou influentes como a que refere que “um homem que fuma [cachimbo] pensa como um filósofo e age como um Samaritano”. Ou ainda: “Acredito que fumar cachimbo contribui de certa maneira para um julgamento calmo e objectivo de todos os assuntos das pessoas”. A publicidade massiva das grandes marcas também influenciou grandemente a imagem do fumador de cachimbo, ao ponto de essas empresas terem recorrido por vezes a fumadores de cachimbo já desaparecidos (como o caso de Einstein), como actores, cientistas, académicos, para posicionar os seus produtos, sejam cachimbos, tabaco e acessórios ou outros relacionados, de forma a chamar a atenção dos indivíduos do grupo socio-económico que queriam captar. Qual é, então, a identidade real dos fumadores de cachimbo, antes da promulgação das leis antitabágicas no mundo ocidental? Em 1973, a psicóloga Eleanor Criswell foi encarregada de fazer um estudo para uma empresa de tabacos, para saber qual a imagem social dos fumadores de cachimbo. Chegou à conclusão que a percepção do público sobre os fumadores de cachimbo era, por ordem de grandeza percebida, estável, capaz, com maturidade, inteligente, confiável e gentil.

Os adjectivos que menos lhes foram associados incluíam egoísta, desleixado, arrogante e presumido. Por outro lado, a percepção que os fumadores de cachimbo tinham deles próprios era consistente com a dos outros. Não existe qualquer pesquisa científica recente que valide esta percepção. Somos de opinião que a imagem percebida muda consoante os públicos questionados e o momento em que se lhes apresenta o questionário, é influenciada pela agenda da comunicação social e até por um filme ou uma personalidade da moda. O fumador de cachimbo no mundo ocidental atravessou vários séculos, desde a estranheza do acto nos primeiros tempos até à sua institucionalização, passou por alguns períodos em que foi menos benquisto, tendo até sido relegado para as salas de fumo aristocráticas da época vitoriana. Mas, de uma forma geral, não era repudiado em ambientes sociais, não só porque o aroma do tabaco não é desagradável, como o cachimbo é um objecto com uma estética própria e a imagem do fumador de cachimbo inculcada pela publicidade correspondia a uma pessoa educada e inteligente.

6 – O que mudou para os fumadores de cachimbo

Com a industrialização, os cachimbos passaram a ter a fortíssima concorrência dos cigarros, que se podem acender e fumar rapidamente. E quanto mais rápido é fumar, mais cigarros se consomem. E podem fumar-se cigarros enquanto se trabalha ou se diverte; já para fumar cachimbo não pode haver pressa, pois poderá levar entre trinta minutos a três horas e meia (o tempo do recordista mundial) a consumir um fornilho cheio de tabaco. A produção em massa de cigarros, a venda em redes de distribuição que alcançam qualquer pequeno lugarejo do mundo, o preço acessível a todas as bolsas e campanhas publicitárias agressivas e constantes, rapidamente conquistou o mercado, generalizando o seu consumo. A indústria passou também a fazer cachimbos a partir de moldes que reproduziam objectos iguais uns aos outros. Não seria tanto a reprodutibilidade da obra de arte a que se referia Walter Benjamin (1992: 210-213)22, mas a produção industrial de vários modelos de cachimbos. A industrialização trouxe um novo paradigma civilizacional que também afectou a indústria do tabaco, como não podia deixar de ser, por força da alteração de estilos de vida e dos comportamentos sociais daí decorrentes. Nos últimos anos, mediante as evidências científicas dos malefícios do consumo de cigarros na saúde pública, não só para os fumadores mas também para os que os rodeiam, foram promulgadas leis na maior parte da Europa e nos EUA que originaram cruzadas fundamentalistas contra todos os fumadores, indiscriminadamente, confundindo prazer e adição. A Lei n.º 37/2007 de 14 de Agosto que tem o objectivo de proteger “os cidadãos da exposição involuntária ao fumo do tabaco” apresenta igualmente “medidas de redução da procura relacionadas com a dependência e a cessação do seu consumo”. De repente, o que era normal, aceitável e até distintivo passou a ser crime. Os fumadores de cachimbo, que têm uma expressão quase invisível no panorama do comércio mundial de tabaco, foram englobados na mesma legislação e sujeitos às mesmas restrições dos fumadores de cigarros. Para reflectirmos sobre este problema, convidámos um grupo de fumadores de cachimbo, sete homens e três senhoras, associados do Cachimbo Clube de Portugal, para uma reunião que teve como objectivo conhecer as mudanças a que a lei antitabágica os obrigou e como se identificam neste contexto legal restritivo.

7 – À procura de uma identidade?

7.1. Todo o indivíduo procura incessantemente um espaço em que seja aceite e de que se sinta parte, onde o seu património de crenças e valores, de gostos e hábitos esteja em sintonia com o de outros indivíduos. É no grupo que a identidade colectiva se forma e se consolida, mercê das contribuições de todos os indivíduos que o constituem. A globalização trouxe o inesperado, a mudança vertiginosa, a fluidez das coisas e das ideias. “A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme” (Bauman, 2001: 97).

Nas sociedades cada vez mais normalizadas, regidas por códigos de conduta que privilegiam o comportamento asséptico dos cidadãos, a identidade individual pode ser uma ameaça para uma comunidade que não tem tempo para reflectir e está formatada para agir consoante a vontade instituída pela maioria ou pelos grupos de pressão. Assim, a identidade individual procura alguma segurança e conforto numa identidade colectiva, em cuja construção de sentido cada indivíduo, com as suas especificidades, participa, embora, Bauman (2006) nos diga: “A identidade enfrenta um duplo dilema: deve servir a um movimento em prol da emancipação individual, bem como um plano de adesão colectiva que ultrapasse qualquer idiossincrasia particular”. Por isso, a identidade é continuamente sujeita a redefinições tanto do próprio indivíduo como resultando de interacções com outros indivíduos e da interpretação de acontecimentos externos. Sendo a identidade fundamentada em valores, a sua interpretação não é imutável ou sequer estável e, como tal, é necessário assegurar aos membros de um grupo que “os valores centrais são os mesmos mas as representações e traduções em acção assumem formas diferentes ao longo do tempo” (Gioia et al. 2004: 352)26. Na sua teoria de sensemaking, ou construção de sentido, Weick (1995: 4) refere que este conceito se refere literalmente a fazer sentido de algo, e a identidade é a primeira pedra na construção de um edifício de sentido. Por isso, é fundamental estabelecer e manter uma identidade que seja a base de sustentação das várias etapas necessárias para que haja sensemaking. É nesse edifício de sentido, construído e remodelado ao longo do tempo, que vamos entrar e tentar perceber de que forma e com que intensidade a nova ordem global abalou as identidades dos seus ocupantes, considerando que “é a grande fluidez da identidade que ajuda as organizações a adaptar-se às mudanças” (Gioia et al.2004: 372)28. É neste contexto de mudança e adaptabilidade que foram feitas as entrevistas ao grupo de fumadores de cachimbo.

7.2. Instalados confortavelmente os convidados, perguntámos a cada um deles o que era ser fumador de cachimbo. Podemos agrupar as várias respostas, aleatoriamente, como segue:

  1. Ter o prazer de poder usufruir da calma e da pausa necessárias para fumar, pensar, meditar.
  2. Criar um ambiente de reflexão intelectual, de concentração, de isolamento com o seu pensamento.
  3. É uma procura de sentido, é construir uma identidade, individualizando-a através do cachimbo.
  4. Ser fumador de cachimbo não está relacionado com o poder e o dinheiro, mas remete para uma identificação estatutária ligada à cultura, ao pensamento reflexivo; é querer pertencer a um grupo que se admira.
  5. Usufruir do “meu belo objecto privado”, o que tem uma marca que só pode ser identificada com aquela pessoa.
  6. Ter um companheiro sempre disponível quando é preciso pensar, reflectir. Poder manuseá-lo e senti-lo na mão ao ponto de se esquecer de o fumar. Mas saber que está lá.
  7. Manter vivas as referências familiares ligadas à infância através da reconstituição da imagem do avô a fumar cachimbo. A segurança da casa de família e da figura paternal do chefe da família.

7.3. As perguntas seguintes incidiram sobre as consequências da legislação antitabágica nos comportamentos e rituais do fumador de cachimbo.

  1. Adaptação no local de trabalho e procura de espaços “clandestinos” para fumar. Irritação pelo fundamentalismo de alguns.
  2. Estar sujeito a pressões na família que antes desta lei não havia.
  3. Procurar locais alternativos onde fumar para respeitar a lei. Sentir que se passou a fazer parte de uma minoria.
  4. Sabendo que a lei foi feita a pensar nos fumadores de cigarro, sentem-se prejudicados.
  5. As restrições visam a perseguição de um indivíduo que está indefeso, o que resulta em exclusão, e isso leva ao empobrecimento da vida social, cultural e estética.
  6. Adaptam-se e cumprem a lei mas distanciam-se de certos ambientes que já não frequentam da mesma forma.

7.4. Quanto ao papel dos clubes de cachimbo, sintetizámos desta forma a opinião geral dos participantes:

  1. Os clubes são constituídos por pessoas, que andam irritadas, sentem a sua liberdade individual restringida, mas não querem desrespeitar a lei e isso vai construindo inseguranças e frustrações que, como membros de um clube, transportam para o seu interior.
  2. Mais do que nunca, os clubes são fundamentais porque são instituições legalmente constituídas que devem e querem resistir culturalmente como espaço de prazer, de partilha, de convivialidade. Por isso, devem manter-se e preparar-se para uma atitude pedagógica em relação às comunidades onde estão inseridos.
  3. Os clubes reflectem as vicissitudes dos seus membros e estão a sofrer alguma turbulência, conscientes da mudança de um ciclo de vida institucional. Mas têm de manter-se como um local privilegiado de discussão saudável de ideias e uma referência de estabilidade.

7.5. A resposta à última questão sobre os locais onde habitualmente fumam não deixou margem para dúvidas sobre a alteração dos hábitos dos adeptos do cachimbo:

  1. Maioritariamente fumam em casa
  2. Nos locais de trabalho, quando há varandas
  3. Em casa de amigos, também fumam na varanda ou no jardim (quando há)
  4. Só um participante disse fumar na rua
  5. Alguns fumam no carro

Verifica-se, pelas respostas dadas, que a mudança de hábitos que tiveram de fazer para cumprir a lei antitabágica não lhes agrada, pois os rituais a que obriga a utilização do cachimbo não se compadecem com uma breve pausa no trabalho, seja numa sala de fumadores (“sala de chuto” como ironizou uma participante) ou na rua. Desafiámos, ainda, os participantes a escrever uma frase, uma “assinatura” que os identificasse perante os outros como fumador de cachimbo. Nem todos corresponderam ao nosso pedido, mas obtivemos as frases seguintes:

  1. O prazer do tabaco da maneira mais antiga
  2. “Smoking his pipe away…”
  3. Fumar cachimbo é a minha ARTE!
  4. Fumar é um prazer
  5. O cachimbo é uma paz interior!
  6. O melhor da vida são os nossos prazeres – fume cachimbo!
  7. Arte e elegância no seu esplendor
  8. A distinção e a classe! O prazer elevado ao seu extremo.

Em oito frases temos a palavra “prazer” enunciada quatro vezes, duas vezes a palavra “arte”, e uma vez as palavras “paz”, “elegância”, “distinção” e “classe”. Em quatro frases foi usado o ponto de exclamação.

8 – A identidade encontrada

Com base na reflexão feita pelos fumadores de cachimbo na reunião para que os convidámos, podemos resumir em alguns pontos a identidade do fumador de cachimbo:

  1. São sobretudo homens, mas também algumas mulheres, maioritariamente de meia-idade, que fumam há muitos anos, alguns desde a sua juventude.
  2. Fumar é um prazer de que não querem abdicar e acham-se com direito a usufruir dele.
  3. O cachimbo é um companheiro na reflexão e na meditação.
  4. A socialização à volta de uma “cachimbada” é cada vez mais difícil, mas não estão dispostos a desistir do seu estilo de vida.
  5. O cachimbo como objecto é uma marca de identificação, faz parte da construção da identidade individual, e não está dependente do poder económico do fumador.
  6. Esperam dos clubes um papel pedagógico junto da comunidade e que continuem a ser um espaço de socialização e discussão de ideias, na procura de uma estratégia que os estabilize como instituições.
  7. Fumar cachimbo é um prazer, uma arte, algo que traz paz e relaxamento, além de ser elegante e distinto.

Se pudéssemos fazer um retrato robot do fumador de cachimbo, seria alguém que gosta de se distinguir, de exibir o seu cachimbo e mostrar o prazer de fumar, de ser visto como uma pessoa interessante e sociável, mas que também aprecia a reflexão. Considera o acto de fumar uma expressão de liberdade e quer ver respeitado o seu estilo de vida. Encontrar alternativas para não violar a lei é um aborrecimento e cria alguma irritação, mas isso não o desmotiva, antes o incentiva a resistir.

Finalmente, os fumadores de cachimbo querem poder manter os seus rituais, usar o tempo de que precisam para os realizar, negam-se a fazer parte do movimento de aceleração contínua que domina a sociedade, onde não há espaço para parar e pensar.

CONCLUSÃO

O fumador de cachimbo habita há longas décadas um edifício de sentido onde estava confortavelmente instalado e onde se alicerçava a sua identidade. Neste edifício encontramos as propriedades enunciadas por Weick (1995): (1) a construção da identidade, (2) baseada numa interpretação retrospectiva e (3) num contexto social, (4) usando uma linguagem e uma acção performativa comum a todos os intervenientes, capazes de criar enactment29, (5) e referindo-se a ongoing events30, (6) donde se extraem sinais ou pistas. Finalmente, diz Weick, (7) a construção

de sentido não tem de ser verdade, mas sim plausível. Todas estas propriedades estão presentes no percurso histórico e sociológico que culminaram no sensemaking do fumador de cachimbo. Mas o tempo mudou alguns contornos desse edifício com a promulgação da lei antitabágica e o momento actual encerra uma sucessão de ongoing events, que tanto podem ser pequenas renovações de sentido como sinais de desinstitucionalização, provocadas pela erosão ou pela falta de vontade ou de capacidade em continuar a recriar-se para manter a instituição activa. A mudança de normas e hábitos, a presença de novos desafios que ameaçam a estabilidade do status quo, a turbulência que povoa o ambiente social, no rescaldo da nova lei, são transportados para os clubes de cachimbo. A procura de novas soluções traduz-se às vezes em confusão, manifestada em interpretações diferentes dos factores de mudança, ou em linguagens performativas diferenciadas, abrindo brechas na compreensão partilhada até então.

Tal como os artesãos esculpem os cachimbos procurando realçar os aspectos mais belos que podem retirar do “chameado” da urze, assim os fumadores e os seus clubes devem “esculpir” a sua estratégia com os meios que a comunidade lhes proporciona, ou como diria Mintzberg (1987: 66), “tal como o oleiro, devem situar-se entre um passado de capacidades corporativas e um futuro de oportunidades. […] Esta é a essência de moldar a estratégia”.

Os fumadores de cachimbo e os seus clubes terão de, literalmente, “meter mãos à obra” para renovar o seu edifício de sentido e assumir a sua identidade actualizada, criando enactments que lhes sejam favoráveis. E para o conseguir, nada melhor do que encher os seus cachimbos e reflectirem em conjunto, enquanto o fumo se dissipa no ar.

Deixe um comentário

Arquivado em Cachimbos, Charutos e Tabaco

Deixe um comentário